Jornal GGN - Em espetáculo que estreou em 2016, Fabiana Cozza interpreta Bola de Nieve, um artista cubano que é homem, negro e gay. Em terras tupiniquins, onde mais 47% da população se declaram pardos e 8%, negros, Fabiana se viu diante de uma decisão difícil: abrir mão de interpretar a dama do samba Dona Ivone Lara. Motivo? Não é preta o suficiente.
A decisão de Fabiana veio a público há quase um mês. Em entrevista à jornalista Eliane Brum, divulgada no El País nesta segunda (2), a cantora rompe o silêncio sobre a desistência e explica o processo de construção de sua identidade negra.
Fabiana, que foi convidada para protagonizar o espetáculo com a benção da própria Dona Ivone Lara, conta que sofreu pressão por parte de um grupo de negros que enxerga em sua cor de pele, um pouco mais clara, um problema de representatividade. A questão central gira em torno do "colorismo": quanto mais escuro o tom de pele de um negro, mais oportunidades lhe são retiradas. Por isso há esse debate que, em algumas situações, vira uma "ambiguidade" e faz com que os próprios negros se dividam entre si, como comentou Fabiana.
"Quando a gente fala ou pensa na coisa do racismo no Brasil vem esse conceito relativamente novo que é o colorismo. Como todo conceito ele precisa ser estudado, entendido e transposto. Transposto para a nossa realidade, pra gente poder ver como é que a gente vai lidar com essas diferenças. Porque esse conceito não deve nos dividir", comentou.
Admitindo a dor de abrir mão de um projeto desse porte, Fabiana tomou a decisão "política" de desistir do papel e dar lugar ao debate sobre representatividade. "(...) eu pensei: 'Não, eu vou embora, eu não vou fazer o musical. Vou ceder esse um lugar para uma mulher mais escura do que eu nesse momento em que sequer essa questão é discutida no Brasil'. A representatividade negra não é amplamente discutida."
Pessoalmente, Fabiana expressou que a identidade negra, em sua visão, é uma construção. Pelo menos com ela foi algo incorporado ao longo da vida. Ela rememorou tempos de infância e adolescência, quando ela sentia-se deslocada entre crianças brancas e negras e considerava-se parda, pois a sociedade sabia que branca ela não poderia ser.
"Eu me entendi e me fiz negra ao longo da vida. Eu sou negra. Ponto. É isso o que eu sinto, é assim que eu quero ser vista. A música que me constitui vem dos tambores, e eu atendo a esse chamado para dialogar com o mundo."
Segundo Fabiana, a "negritude" está "nos meus espelhos, na minha herança familiar, no meu fazer diário, na minha religiosidade, na comunhão com tantos amigos não negros de pele. No meu canto que vai pro mundo e não tem limites e não se curva ou se intimida a despeito dos desafios e restrições que eventualmente surgem no caminho. Minha negritude fala alto", acrescentou.
A cantora revelou os bastidores do convite para interpretar Dona Ivone Lara e se disse honrada em "representar uma mulher dessas tendo no currículo toda uma passagem com ela, me fazia sentir que esse convite estava muito no lugar pra mim." O "currículo" é uma referência aos momentos em que ambas compartilharam o palco.
Quem considerou que Fabiana não era negra o suficiente para ser Dona Ivone Lara, ironicamente, não sabia ou não quis debater o fato de quem a cantora foi escolhida pela dama do samba para tal papel. "Acho que a decisão e a vontade de Dona Ivone não foram ouvidas", avaliou.
Leia a entrevista completa:
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